As primeiras horas da investigação sobre Omar Siddique Mateen lembram à manhã do dia 2 de dezembro passado, quando Syed Farook e sua esposa, Tashfeen Malik,
mataram a tiros a 14 pessoas em um centro médico de
San Bernardino, Califórnia. Farook tinha 28 anos e Malik 29. Ele era filho de imigrantes paquistaneses, nascido e educado nos Estados Unidos. Em ambos crimes, ele utilizou um rifle.
Em San Bernardino, as forças de segurança optaram pela prudência antes de considerar o massacre um ato terrorista. A família e os amigos de Farook insistiram durante horas em que não se tratava de um radical, mas sim de um homem religioso e reservado. Finalmente, o FBI encontrou uma mensagem no Facebook publicado por Malik com pseudônimo na qual ele jurava lealdade ao Estado Islâmico ou ISIS.
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/12/internacional/1465748300_171535.html
Traduzido por Vila Vudu
Os EUA e a Europa, com muitos colaboradores muito empenhados, fizeram incontáveis guerras e guerras à distância, em grandes áreas da África, do Oriente Médio, da Ásia Central.
O que o ocidente buscava, reordenar o mundo pós-soviético mediante meios militares convencionais no Afeganistão em 2001 e no Iraque a partir de 2003, continuou a buscar por vias menos convencionais – a chamada “Primavera Árabe” e as várias guerras à distância (“guerras por procuração”) que eclodiram depois, a partir de 2011.
Hoje, as guerras alimentadas pelo ocidente continuam a consumir a Líbia, a Síria, o Afeganistão e o Iêmen, ao mesmo tempo em que a praga da violência e da instabilidade política atormenta outras nações nas quais o ocidente nem se intrometeu nem está hoje ocupando ou subvertendo.
Só a França – além de ter comandado operações militares na Líbia em 2011, e de estar atualmente com operações militares ativas na Síria e no Iraque – tem tropas em várias nações africadas dentre as quais a República Centro Africana (2 mil soldados), Chade (950), Costa do Marfim (450), Djibouti (2.470), Gabão (mil), Mali (2 mil) e Senegal (430).
Durante os mesmos 15 anos, Eritreia e Somália sofreram invasões da vizinha Etiópia – que, apesar de viver na mais horrenda miséria – recebe apoio militar dos EUA, que induziram o país a fazer guerras por procuração contra vizinhos, em nada diferentes do que a Arábia Saudita faz hoje no Iêmen.
Como se podia prever, o resultado é um arco de caos que cobre metade do planeta. Também previsivelmente, refugiados tentam escapar desse arco de caos, e escapam para a Europa, única parte do mundo onde podem esperar salvar-se do caos.
Para a África, o aspecto talvez mais irônico da atual crise de refugiados que assola a Europa é o fato de que a Líbia – que a Europa conspirou para destruir – há muito tempo absorvia refugiados de toda a África, garantindo-lhes trabalho, numa nação estável onde podiam viver decentemente. Quando a Líbia foi destruída por EUA e Europa em 2011, houve quem previsse que a Líbia passaria, de destino para refugiados, a ponto de passagem clandestina deles, diretamente para a Europa. E isso, precisamente, aconteceu.
Europa criou os refugiados, Europa tem de se responsabilizar por eles
Sem dúvida, ao lado de EUA e muitos outros, a Europa é responsável pela crise de refugiados. Cada nação que aprovou dar sua contribuição militar para operações de guerra no Norte da África, Oriente Médio e Ásia Central é diretamente responsável pela instabilidade subsequente que adveio inevitavelmente.
O ocidente alegou deveres de “humanitarismo” para justificar aquelas guerras, e agora que é chegada a hora de realmente prover ajuda humanitária aos refugiados criados por aquelas guerras do ocidente, surge de repente um inexplicável ‘debate’ sobre se é o caso ou não de oferecer ajuda, e que grau de ajuda.
Falar de lei internacional soa como piada, porque o momento para respeitar a lei internacional seria antes de cometer agressão contra nação soberana, agressão que precipitou a crise de refugiados. Hoje, falar de lei internacional é quase obsceno. Mas permanece abera a questão: se Europa não quer acolher os refugiados criados por suas próprias guerras, nem os ‘aliados’ da Europa – EUA, Turquia, Israel e o Golfo Persa –, quem os acolherá?
Para fazer de uma crise, o caosDezenas de milhares de pessoas que tentam escapar de uma conflagração transregional e correm para a Europa inevitavelmente gerarão tensão. Os sistemas têm de absorver número crescente de pessoas que precisam de comida, roupas, moradia, medicamentes, eventualmente educação, formação profissional e trabalho. Nas melhores circunstâncias imagináveis, sob governo racional e honesto, já seria um desafio enorme. Se se considera que os encarregados de gerir a crise sempre foram os diretamente responsáveis por terem criado a crise, fácil antever que a crise gerará caos cada vez maior.
Para cinicamente fazer dessa crise o caos, são indispensáveis três ingredientes:
Fascistas: Primeiro, EUA e Europa investiram pesadamente na disseminação da “islamofobia”, de fato desde o dia 11/9/2001, para ajudar a insuflar as infindáveis guerras deflagradas supostamente como revide contra os ataques terroristas em New York, Washington e Pensilvânia. Grupos como a Liga Inglesa de Defesa, LID [
English Defense League (EDL)], e o mais recente Europeus Patriotas Contra a Islamização do Ocidente, EPaCIO [
Patriotic Europeans Against the Islamisation of the West (PEGIDA)], não param de brotar por toda a parte, e são desde o início apoiados
pelos próprios arquitetos das guerras que obrigam as pessoas a deixar seus países, para a Europa. Ironicamente, essa “Guerra ao Terror” é guerreada por exércitos de terroristas que os próprios ‘ocidentais’ (EUA, europeus e sauditas) passaram décadas treinando, armando e pagando.
O serviço dos grupos fanáticos LIA e EPaCIO é efeito do pior tipo de desinformação; misturam o 1,6 bilhão de muçulmanos que há no mundo num único grupo, e os acusam de desejar “islamizar” o planeta. Para um membro médio típico dos grupos LIA ou EPaCIO, não faz diferença alguma que, ainda que 1% dos muçulmanos fossem extremistas violentos, já seria um exército de 10 milhões, os quais, se quisessem já teria “islamizado” o planeta.
Quando torrentes de refugiados começaram a fluir para a Europa, no clima de medo e ignorância tão cuidadosa e metodicamente criado lá ao longo dos últimos 15 anos, não foi preciso muito trabalho para convencer os fanáticos dos grupos LIA e EPaCIO de que a “invasão” já começara.
Terroristas: O segundo ingrediente é extremistas. EUA, Europa e seus aliados turcos e persas investiram ao longo de décadas para criar grupos terroristas que operassem simultaneamente como força mercenária que opera à distância e como instrumento para a prática de violência com vistas a implantar o medo também em casa.
Mediante campanha centrada e conduzida pela mídia-empresa privada local, esses extremistas são quase sempre empurrados para se misturarem aos refugiados – e agências de inteligência muitas vezes deliberadamente os infiltram em campos de concentração de refugiados e enclaves que brotam hoje por toda a Europa.
Para quem duvide disso, são especialmente interessantes os relatos de “mesquitas” onde pregam “imãs” que apoiam o chamado “Estado Islâmico” e até recrutam combatentes por toda a Europa para unir-se à luta contra o governo eleito do presidente Bashar al-Assad na Síria. Sobretudo, quando se descobre que as tais mesmas “mesquitas” trabalham com a polícia e os governos ocidentais para manter arregimentados os tais mesmos combatentes quando retornam, como se viu acontecer numa famosa “mesquita” na Dinamarca.
O jornal
Local DK noticiou o ‘evento’, em artigo intitulado “
Mesquita dinamarquesa amplia o apoio ao ISIS,”:
“Queremos que o Estado Islâmico se destaque. Queremos um estado islâmico em todo o mundo” – disse o diretor da mesquita, Oussama El-Saadi, no programa DR.
El-Saadi disse também que vê a participação da Dinamarca na batalha liderada pelos EUA contra o ISIS, na Síria, como afronta direta não só à sua mesquita, mas a todos os muçulmanos.
“É guerra contra o Islã” – disse ele.
Paradoxalmente, esse mesmo homem – publicamente ativo na pregação de violência e desrespeito à ordem social, e que teria de ser preso e afastado do contato social, por dar apoio a organização terrorista conhecida –, como adiante se descobriu, era peça-chave de um programa do governo dinamarquês dirigido a jovens dinamarqueses que se alistaram para lutar ao lado do ISIS e retornaram da Síria. A revista Der Spiegel comentou, em artigo intitulado “Reação da comunidade: resposta dinamarquesa à Jihad radical”:
Comissário Aarslev se disse orgulhoso do que já conseguiram até agora, mas não se cansa de elogiar o seu pessoal e outros envolvidos no programa. Fala com entusiasmo especial de um homem, Oussama El Saadi, salafista de longas barbas que dirige a Mesquita Grimhøjvej em Aarhus, frequentada por muitos dos jovens que deixaram a cidade para unir-se à guerra na Síria e voltaram para casa.
(…) Aqueles dois jovens uniram-se a um projeto que busca encontrar respostas a perguntas que atormentam todo o continente europeu: O que fazer dos radicais retornados da Síria? Que medidas há disponíveis para conter o terror, que mais uma vez se aproxima tão perigosamente dos países ocidentais?
O papel de El Saadi inclui três aspectos. Intencionalmente, ele promove e alimenta as narrativas dos islamófobos reunidos nos movimentos LIA e EPaCIO; mobiliza interessados em lutar nos batalhões e regimentos de terroristas que o ocidente organiza e mantém no Oriente Médio e Norte da África; e serve de farol guia para os mesmos combatentes, quando voltam para a Europa, super treinados e muito experientes, com incontáveis habilidades e contatos diretos que podem ser mais facilmente mobilizáveis para inflar tensões já conhecidas e previstas, porque são inerentes a qualquer grande movimentação de refugiados.
Multiculturalismo: O terceiro ingrediente indispensável para fazer de uma crise, o caos, é a versão ocidental de “multiculturalismo”. Como o terrorismo e o extremismo de direita, aqueles mesmos específicos interesses que se veem, dentre outros pontos, naquela mesquita dinamarquesa, também construíram
um exército de ONGs para promover a visão deles sobre o que deveria ser conceito claro, simples e direto.
Longe de pregar respeito mútuo e imparcial a etnia, religião e cultura de outros povos sob uma identidade nacional singular, trata-se sempre é de um uso cinicamente manipulativo e intencional de uma dada cultura, apresentada como superior à identidade nacional e ao Estado de Direito, e superior também a outras culturas, em todos os casos em que seja conveniente.
Assim, características culturais consideradas mais disruptivas podem ser intencionalmente promovidas acima de outras mais tolerantes, mais estabilizantes e construtivas, sempre à custa da vida e da liberdade de outros povos. Não acontece por acaso: é planejado e feito deliberadamente para alimentar o senso de privilégio e de animosidade entre culturas, etnias e religiões diversas. Historicamente, sempre fez parte constitutiva de qualquer agenda ou estratagema de “dividir para governar”.
Juntas, essa trifeta – fascistas, terroristas e ONGs que são seletivamente ‘multiculturalistas’ – trabalha com eficiência devastadora, convertendo o que já é crise criada pela própria Europa, em caos total – que pode ser manobrado para servir aos interesses arregimentados por trás do trio.
Do caos à crise e à estabilidade
Ao longo da história humana, números imensos de refugiados e imigrantes têm sido absorvidos em várias nações, não só com grande sucesso, mas para grande benefício dos países que se dedicam genuinamente a absorver esse influxo de homens, mulheres e crianças. Para a Europa, essa atitude será difícil, mas não é impossível; e várias questões terão de ser atentamente encaminhadas.
1. Fim das guerras: Mesmo em condições ideais, seria difícil administrar a crise de refugiados. Enquanto a Europa financiar ou apoiar guerras em todo o mundo, a crise não apenas continuará, como também será cada dia mais incontrolável. Por mais que líderes europeus façam poses de vítimas da catástrofe que eles mesmos geraram, ainda assim continuam a promover cada vez mais guerra contra a Síria, deixando que os sauditas safem-se completamente impunes apesar de estarem destruindo também o vizinho Iêmen e ocupando militarmente várias outras nações.
Para pôr fim às guerras e permitir que aquelas nações se auto-reconstruam. Pôr fim às guerras e permitir que aquelas nações se reconstruam à sua própria maneira é o único modo de deter o atual dilúvio de imigrantes. Impedir que forças sírias e russas restaurem a paz na Síria é prova da falta de sinceridade dos governantes europeus em tudo que digam sobre suas preocupações humanitárias, e mais especificamente sobre esforços que estariam empreendendo para minorar os sofrimentos dos refugiados.
2. Reumanizar os refugiados: Para realmente proteger os refugiados é preciso, em primeiro lugar garantir-lhes a própria identidade. Parar de referir-se a eles como “refugiados” em geral, sem nomes e sem história, e reconhecê-lo não como “uma onda”, ou um “influxo”, mas como indivíduos. Assim, os que criaram essa crise e os que continuam a explorá-la e lucrar com ela, perdem os meios e a oportunidade para diluir a responsabilidade pela sobrevivência deles, ao ponto de haver quem culpe os próprios refugiados por terem sido obrigados a deixar para trás toda a própria vida.
A maioria dos europeus não são capazes de distinguir entre xiitas e sunitas, muito menos sabem o que é o wahhabismo. Na maioria dos casos, nem sabem distinguir um sique [ing.sikh] de um muçulmano. Essa ignorância é terreno fértil onde brotam todos os racismos e intolerâncias. É essencial drenar esse pântano. Em vez de atacar as construções mais extremistas e inamovíveis que levam às ruas os movimentos LIA e EPaCIO, apelar à maioria civilizada e silenciosa, mostrando quem são os homens e mulheres que realmente vivem naqueles campos, para assim ir mostrando, mais do que apenas dizendo, que há uma mínima maioria que cria problemas, assim como há muita gente que chegou à Europa com família e filhos, disposta a realmente viver como manda a lei e construir um novo futuro.
Pretender que entre dezenas de milhares de pessoas não haverá criminosos é não ver a realidade da natureza humana. Coletivizar os refugiados é ajudar os que só querem explorar a crise, porque assim transferem para outros a responsabilidade pela geração da própria crise, que é dos europeus e norte-americanos, nãos dos refugiados. Atribuir traços imutáveis, bons ou ruins, a qualquer grupo humano é a definição de intolerância. Quem não queira ter de enfrentar autodefesa intolerante, que não ataque os refugiados com intolerância.
3. Redefinir o multiculturalismo: o presidente russo Vladimir Putin disse, ele mesmo, em artigo intitulado “
Rússia: A questão das etnias“, que:
Indivíduos que vivam nesse país [Rússia] devem ter consciência bem clara da própria fé e etnia. Mas sobretudo têm de ser cidadãos da Rússia – e orgulhar-se disso. Ninguém tem o direito de pôr questões de etnia e religião acima da lei do Estado. Mas a lei, por sua vez, tem de considerar noções e questões religiosas e étnicas.
Para o presidente Putin, é o que se pode ver na Rússia. Em Cingapura, essa é também a definição de multiculturalismo. Os cidadãos de Cingapura – muçulmanos, cristãos, budistas, indus e seculares – definem-se, em primeiro lugar como cingapurenses. A identidade nacional deles é definida por ideias universais como profissionalismo, meritocracia, excelência na educação pública e muito trabalho individual. Essas ideias garantem respeito mútuo entre diferentes culturas, fés, crenças, sem que ninguém exija do próximo que abandone as próprias. Resulta daí que culturas às vezes muito diferentes operam em harmonia sob uma identidade nacional singapurense
.
O abuso da noção de multiculturalismo – quando se sobrepõe ao Estado e à lei – distorce a própria ideia de respeito e convivência entre culturas.
O ‘multiculturalismo’ à ocidental opera como vice-rei que governa uma colônia e ostensivamente manifesta sua ‘preferência’ por uma tribo, a qual assim ganha poder extra sobre todas as demais, para deliberadamente induzir a ‘cultura’ preferida a fazer guerra contra todos os diferentes, numa espécie de imperialismo dentro do imperialismo. Esse ‘multiculturalismo’ imperialista à ocidental existe realmente para manter fracas todas as culturas alvos da ambição imperial, e para apagar da equação, completamente, qualquer ideia de respeito entre iguais.
Em vez de nos deixar engolir e perder na discussão da falsa narrativa suposta de esquerda ou de direita, e pró- e antimulticulturalismo, é preciso, antes, redefinir a noção de cultura e de multiculturalismo, e construí-la em oposição ao imperialismo, não a favor de alguma ‘igualdade’ que jamais há ou haverá onde haja interesses imperiais ativos.
Quando os que defendem os refugiados construírem e puderem dispor de meios objetivos para conhecer refugiados reais, respeitadas a religião e a cultura deles, em oposição a figuras de desenho animado inventadas no ocidente, como o ‘Imã’ Oussama El Saadi e as perversões que essa gente faz passar por religião e cultura, a maioria silenciosa sem bandeira, que continua a gravitar em direção aos grupos fascistas como EPaCIO, encontrará, afinal, uma alternativa racional à fascistização da opinião pública, da qual o ocidente é agente e principal beneficiário.
4. Integrar os refugiados: Manter segregados os refugiados, cercados num limbo socioeconômico pressuposto legal, só faz alimentar mais e mais tensões e incidentes. A primeira e principal providência é e sempre será integrá-los na sociedade e permitir que reconstruam a vida.
Se acontecer o muito improvável evento de Europa, EUA e respectivos aliados porem fim às hostilidades e provocações a que se dedicam pelo mundo, e se retirarem os respectivos soldados e milícias mercenárias das muitas nações que hoje eles se dedicam a atormentar e destruir, claro que o melhor sempre será investir todo o dinheiro e todo o empenho possíveis para que as pessoas hoje obrigadas a procurar salvação tão longe, possam voltar para casa.
Refugiados podem e querem trabalhar, como já fazem os muitos milhões que se chegaram à Europa ao longo de décadas, de séculos. São como sempre foram valioso patrimônio que a Europa recebe, não são a ameaça que parecem ser hoje, numa Europa já reduzida à miséria, não por causa dos pobres europeus, mas por causa do ânimo imperial das elites europeias, que já reduziram os próprios cidadãos europeus a horda descivilizada entregue à mais feroz luta por trabalho inexistente para todos, e que não reapareceria nem que todos os refugiados desaparecessem da face da Terra.
Além disso, só depois de os refugiados serem socioeconomicamente integrados o processo de assimilação poderá começar.
Os europeus que temem as nações de onde os refugiados partem, aprenderão, com a convivência, que há mundo e vida civilizada – muito altamente civilizada em incontáveis casos – também fora da Europa. A Europa melhorará. Afinal de contas, a Europa já é a síntese de longa e ininterrupta história de grandes imigrações. Em todos os casos, porque a Europa também é síntese de longa e ininterrupta história de agressões imperiais contra povos, culturas, religiões, idiomas os mais diversos, que não deixaram alternativa às pessoas além de se pôr na estrada, seguindo a trilha dos ladrões que lhes roubaram tudo – casa, terras e futuro.
Os refugiados modificarão a Europa, porque a Europa destruiu as nações que hoje os refugiados são forçados a abandonar. Uma espécie de “A Conquista”, na direção inversa. Causa, para o bem ou para o mal, e efeito, para o bem ou para o mal; em todos os casos, inescapáveis.
* Tony Cartalucci é autor, analista e pesquisador de geopolítica, com base em Bangkok. É colaborador regular da revista online “New Eastern Outlook”.
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O nacionalismo identitário em foco
por Flávia Dourado - publicado 15/07/2015 13:55 - última modificação 01/02/2016 10:55
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O cientista político Álvaro Vasconcelos fala sobre o nacionalismo identitário na Europa |
Após 30 anos de avanço da democracia no mundo, o futuro do regime político está ameaçado pela emergência do que vem sendo definido como "nacionalismo identitário", segundo a avaliação do cientista político português
Álvaro Vasconcelos, professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. Ele falou sobre o tema no debate
O Desafio do Nacionalismo Identitário, realizado pelo IEA no dia 24 de junho.
De acordo com Vasconcelos, o número de países democráticos aumentou nas últimas décadas no fluxo da "terceira onda democrática" — fenômeno iniciado na Europa nos anos 1970, quando a democracia foi instituída em Portugal, Espanha e Grécia; que atingiu a América Latina na década de 1980, com o fim das ditaduras militares; chegou à Europa Central e Leste nos anos 1990; e finalmente varreu o Oriente Médio e o norte da África em 2011, num movimento revolucionário conhecido como "Primavera Árabe".
Diante do alcance e longevidade dessa onda, afirmou o professor, acreditava-se que a democracia continuaria a se expandir para outras regiões do globo. "Mas constatamos que há um freio na onda, como se ela tivesse travado a partir dos anos 2000", disse, lembrando que a Primavera Árabe não culminou numa transição democrática plena nos países que integraram a revolução.
O cientista político citou o estudo conduzido por Larry Diamonds no Centro de Democracia, Desenvolvimento e Estado de Direito da University of Stanford, Estados Unidos, o qual concluiu que desde os anos 2000 tem havido um retrocesso da democracia no mundo: nos últimos 15 anos, 25 países deixaram de ser democráticos em função de golpes de estado ou recuaram em relação aos princípios que regem o regime político, como é o caso da Turquia.
"Será que a democracia vai continuar a se espalhar ou entramos num período de crise e vamos assistir a outros retrocessos no processo democrático?", indagou Vasconcelos. Em busca de respostas para esta questão, um grupo de pesquisa do IRI, liderado pelo professor, identificou três megatendências globais que ditarão o futuro da democracia:
- Emergência do nacionalismo identitário num cenário marcado por trânsitos migratórios cada vez mais intensos e pelo avanço do multiculturalismo.
- Empoderamento dos cidadãos, resultado da progressiva redução da pobreza e do consequente crescimento de uma nova classe média global; da emancipação das mulheres; da melhoria dos índices de educação; e do acesso às tecnologias da informação.
- Difusão do poder do estado para instituições não estatais, sobretudo para grandes grupos econômicos, a qual vem acompanhada da fragilização dos estados e da redução do poder dos governos.
Organizado em parceria com o IRI no âmbito do Laboratório Megatendências Globais e Desafios à Democracia do IEA, o debate inaugurou um ciclo de três encontros, cada um relacionado com uma das megatendências identificadas pelo grupo. Os próximos serão sobre O Desafio do Financiamento das Campanhas Eleitorais e O Desafio da Democracia Participativa.
Neste primeiro encontro, os expositores foram
Arlene Clemesha, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP; e de
Leandro Karnal, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp; além de Vasconcelos.
Origens europeias
Após introduzir a temática geral do ciclo de debates com uma exposição sobre Tendências Mundiais e Desafios à Democracia, Vasconcelos, que é fundador do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI) de Lisboa, Portugal, entrou no tema específico do primeiro encontro ao falar sobre o Desafio do Nacionalismo Identitário na Europa.
O cientista político destacou que os partidos de extrema direita vêm ganhando cada vez mais espaço no continente europeu e impulsionando o recrudescimento do nacionalismo identitário, definido por ele como a "afirmação da superioridade da sua nação ou da sua comunidade em nome de uma determinada identidade exclusiva, seja rácica, cultural, religiosa ou civilizacional, que estaria ameaçada".
De acordo com ele, os partidos nacionalistas crescem em toda Europa, mostrando-se mais fortes na Itália, França, Grécia e nos países nórdicos, onde são os segundos mais votados. "Isso prova — observou — que o fenômeno não está ligado à estrutura social e econômica e não tem a ver com a crise financeira na Europa do Sul, pois no Norte há a mesma tendência."
Defensores de políticas de identidade excludentes e fomentadores de correntes xenófobas contrárias à imigração, esses partidos apresentam duas características centrais em comum: a islamofobia e o anti-multiculturalismo.
A islamofobia surge sobretudo de um olhar essencialista sobre o Islã, apontou o cientista político, lembrando que não se trata de um pensamento meramente popular, mas calcado em explicações eruditas fornecidas por intelectuais, os quais justificam a perspectiva islamofóbica com base numa alegada contradição fundamental entre Islã e democracia, Islã e razão.
O antimulticulturalismo, por sua vez, vem acompanhado do sentimento antiglobalização vinculado ao "nacionalismo branco". Segundo Vasconcelos, essa corrente vê o multiculturalismo como uma ameaça a uma identidade dita superior.
Para ele, as correntes anti-imigração que estão na origem tanto da islamofobia quanto do antimulticulturalismo não são fruto da crise europeia, uma vez que floresceram durante o período de crescimento econômico da Europa, sobretudo a partir da difusão da ideia de que "os imigrantes fazem muitos filhos e levarão a uma invasão dos pobres na Europa".
Além disso, advertiu, essas políticas identitárias não são exclusividade da direita. A islamofobia, por exemplo, também aparece como bandeira de partidos de esquerda, que veem o Islã como uma ameaça ao Estado laico e como sinônimo de violência, como vem acontecendo da França.
Ecos no Oriente Médio
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Arlene Clemesha discute o desafio do nacionalismo identitário no Oriente Médio |
Ao falar sobre O Desafio do Nacionalismo Identitário no Oriente Médio, Clemesha se ateve sobretudo à emergência do Estado Islâmico no Iraque e na Síria (Isis, na sigla em inglês) — grupo fundamentalista e violento, cuja atuação estaria fomentando a islamofobia em todo o mundo.
De acordo com ela, o surgimento do Isis está ligado ao crescimento do nacionalismo identitário no Oriente Médio e à queda de expectativa em relação à Primavera Árabe. Na sua avaliação, o movimento revolucionário que irrompeu em 2011 deu origem a uma competição de narrativas explanatórias: para uns, seria uma nova fase da onda democrática, como ressaltou Vasconcelos; para outros, seria a continuação da Revolução Islâmica de 1979 no Irã, sendo o Isis o principal ator dessa continuidade.
Para analisar a questão, Clemesha recorreu à tipificação dos grupos islamitas:
- Reformistas: aspiram ao estabelecimento de um estado islâmico a longo prazo a partir de práticas eleitorais e democráticas, conduzidas dentro do arcabouço constitucional existente e sem uso da violência;
- Radicais: visam a gerar insurreições que levem à tomada do poder e, para isso, recorrem a métodos violentos, os quais incluem terrorismo contra agentes do Estado.
- Pós-islamistas: defensores da laicidade, ascendem no período pós-Revolução Islâmica com a proposta de separação entre igreja e estado.
Para a professora, há dois problemas com a associação entre o Isis e a Revolução Islâmica. O primeiro é que o movimento revolucionário não era na sua origem islâmico, isto é, não tinha por objetivo a constituição de um estado teocrático. O segundo é que a revolução deu lugar a um contexto de contestação interna próprio ao pós-islamismo, marcado pela defesa do estado laico.
Clemesha criticou a cobertura da imprensa relacionada ao Isis, sobretudo por se referir ao grupo como se este incorporasse a essência do Islã. "O Isis não representa o islamismo e nem fala em nome dele", advertiu.
Ela ponderou que, embora se coloque como resgate e renascimento do Estado Islâmico, o Isis diverge das características históricas do islamismo majoritário por seu alinhamento com o "milenarismo apocalíptico e pela não-aceitação de qualquer alteridade e diversidade". Prova disso, afirmou, é que o Isis não se encaixa em nenhum dos grupos islamitas e se diferencia até mesmo da Al Qaeda, uma vez que assume uma postura sectária anti-xiita.
Além da atuação do Isis, ela apontou o discurso do governo israelense em relação aos países muçulmanos como responsável pela recrudescimento da islamofobia. "A origem disso está na tendência a diferenciar o mundo e buscar identificação rápida, fácil e excludente", disse, lembrando que a estrutura desse discurso é muito parecida com a do nazismo.
Identidade brasileira
Numa exposição sobre Tendências Identitárias no Brasil, Karnal destacou a ausência de uma identidade genuinamente nacional que defina o país ou o povo brasileiro. "Ter ou não ter identidade não é uma virtude ou defeito que devamos resolver com o nacionalismo", ressaltou.
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O historiador Leandro Karnal durante sua exposição sobre a identidade brasileira |
De acordo com o historiador, a noção de identidade trata-se de um projeto político essencialmente europeu associado ao nacionalismo do século 19. Projeto este, ressaltou, que está na base do chauvinismo francês, do pan-eslavismo, do pangermanismo, do nazismo, e que "resultou, no século 20, numa das maiores tragédias que a humanidade já experimentou".
Na avaliação dele, é pelo menos curioso que o papel da identidade esteja ressurgindo numa época de globalização, marcada pela diluição das identidades. "Como o Brasil constrói um conceito de identidade exatamente no momento em que uma parte da Europa está desconstruindo e outra parte está construindo a partir da ideia de xenofobia?".
Em função desse contexto, advertiu, as discussões sobre a questão da identidade devem se voltar para uma pergunta que escapa a muitos: a quem o coletivo nacional representado serve? "Considerando o século 20, ele é ressuscitado essencialmente pelo pensamento conservador, ou seja, é a direita que ressuscita a ideia de nação", enfatizou.
Para ele, como a identidade brasileira geralmente é representada por uma elite letrada tradicionalmente reacionária, há uma falta de comunicação entre quem representa a identidade nacional — "produtores de jornais, elaboradores de revistas, coordenadores de programas de TV" — e quem é o país de verdade.
Como exemplo desse desencontro, Karnal citou o truísmo repetido reiteradamente por "uma elite que se considera intérprete da nação: o povo não sabe votar". De acordo com ele, esse axioma vem acompanhado de outros dois, igualmente preconceituosos: "eu não sou povo" e "eu sei votar". A ideia final disseminada por esses intelectuais, destacou, é a de que não pertencem a essa nação.
O historiador concluiu sua fala com uma reflexão proposta pelo antropólogo Marshall Sahlins: Por que a abertura de um McDonald's na Sicília, Itália, suscita a ideia de que os sicilianos estão perdendo sua identidade, mas a existência de 10 mil restaurantes italianos em Nova Iorque não representa uma ameaça à identidade americana?
Da mesma forma, comparou Karnal, por que o costume de fantasiar as crianças brasileiras brancas com penas e plumas no dia do índio, 9 de abril, é visto como uma homenagem aos nativos, mas quando crianças indígenas vestem calças jeans, logo se pensa em aculturação e perda da identidade?
"Qual é a base desse pensamento? Eu continuo achando que a cultura branca, ocidental, cristã na sua forma dominante, é uma cultura tão dominante que nada pode arranhá-la. E o multiculturalismo deixa então de ser um risco para essa cultura", finalizou.
Debate
Mediados por
Martin Grossmann, diretor do IEA, quatro debatedores comentaram as exposições de Vasconcelos, Clemesha e Karnal a partir de suas áreas de expertise: o economista
Marcelo Neri, ministro chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República; a psicóloga
Sylvia Dantas, coordenadora do Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais do IEA; o sociólogo
Félix Sánchez, professor da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP; e
Geraldo Campos, professor do curso de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Neri concentrou-se na realidade brasileira ao apontar três grandes características definidoras da identidade nacional. De acordo com ele, apesar dos avanços em termos de redistribuição de renda observados no Brasil desde 2001, a desigualdade continua sendo uma das principais marcas do país.
A segunda marca seria a diversidade, a qual comparou com um caldeirão, onde raças e culturas se misturam. "O Brasil é um país diverso, mas cheio de contradições. A proporção de pessoas que se auto declaram negras vinha caindo desde 1940, mas a tendência se inverteu. Algo acontece na sociedade e na psicologia brasileira", frisou.
A terceira marca seria o que Neri definiu como a "bipolaridade" que contrapõe de forma radical esquerda e direita no país. "As pesquisas mostram uma certa queda na desigualdade. Isso moveu placas tectônicas que geraram terremotos", disse.
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Os debatedores Marcelo Neri, Sylvia Dantas, Geraldo Campos e Félix Sánchez fazem suas considerações |
Dantas priorizou os vínculos entre migrações, interculturalidade e nacionalismo identitário. Para ela, os problemas ligados à questão da identidade surgem porque o ser humano recorre à estereotipação como forma de lidar com o medo do que é diferente ou desconhecido. O estereótipo, explicou, proporciona certo conforto psicológico em relação ao outro, que é visto como ameaça: "Oferece uma solução supérflua, que traz a ideia de pertencimento, de fraternidade, uma proteção a todas as angústias e frustrações da vida".
Já Ruiz trouxe uma nova perspectiva para o debate ao falar sobre o nacionalismo identitário no contexto da América Latina, com foco nas transformações pelas quais o continente passou desde 1999, quando Hugo Chávez foi eleito presidente da Venezuela.
Segundo o sociólogo, a eleição de Chávez foi o ponto de partida para uma maré de mudanças em diversos países latino-americanos, entre as quais se destacam a vitória de Evo Morales, indígena envolvido com plantio de coca, na Bolívia; e de Rafael Correa, que chega ao governo equatoriano apoiado por movimentos indígenas. Ruiz citou, ainda, Uruguai, Brasil e Argentina como países que sofreram uma guinada à esquerda.
As mudanças observadas nessas nações, destacou, fez crescer "a ideia de que estamos sob o tempo de invasão dos pobres na política". Para ele, isso "reporta a uma tradição secular, diria milenar, de exclusão de uma parcela muito extensa da sociedade".
Campos, por sua vez, tratou da temática geral do debate. Ele deu início à sua fala questionando o próprio conceito de nacionalismo identitário. "Existe algum nacionalismo que não é identitário? Todo nacionalismo é identitário", afirmou.
De acordo com ele, o pleonasmo é sintoma de dois fenômenos que se colocam como um desafio à democracia: a criação de dispositivos específicos de produção de subjetividades baseadas na pureza e a questão territorial, que readquire centralidade no debate político